terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Feliz Natal!!!!

Olá caros amigos do blog hoje é 25 de dezembro, dia de descanso. Estaremos de volta amanhã. Desejo à todos um Feliz Natal e um ano de 2008 de muitas realizações. Abaixo segue um conto de Natal bem legal. Amanhã voltamos com informações quentes.

O pai, o filho, o outro
Marçal Aquino

Ele não gostou da casa. (Você também não gostaria, acredite.)
Era úmida, escura, inóspita. Não existia forro. As paredes exalavam um hálito defumado, as cortinas estavam encardidas, os móveis caíam aos pedaços. Não havia nada enfeitando as paredes, nem mesmo um calendário. (Você já esteve numa casa doente? Aquela era uma.)
O rapaz sentou-se num sofá desbotado, que cedeu de modo preocupante sob seu peso, e olhou para a velha empregada. Ela disse:
Seu Valdemar já vem.
E afastou a cortina de tirinhas para voltar à cozinha. Sem nada para distrair os olhos nas paredes, ele fixou a atenção no pedaço de bombril preso à antena da televisão portátil. No canto oposto, um minipinheiro de folhas amareladas, enfeitado por meia dúzia de bolas coloridas, fazia as vezes de árvore de Natal. Ele esperou, represando a vontade de sair dali. (Você nunca se arrependeu de algo que ainda está por acontecer?)
Por uma fresta das cortinas, ele pôde ver um pedaço ainda azulado do céu. Escurecia devagar naquela época do ano. Chegaram da cozinha o ruído de panelas e o cheiro de alho fritando. Ele ouviu a voz da empregada, mas não entendeu o que ela dizia. Então se levantou e colocou o rosto entre as tirinhas de plástico.
Falei que você pode ligar a televisão, se quiser, a mulher disse. Só que a imagem não é grande coisa.
A cozinha era maior do que ele imaginava. Abrigava um fogão, armários, uma enorme pia de mármore e uma mesa de fórmica, coberta por uma toalha vermelha. Pratos e talheres para três pessoas. De um dos cantos do teto, afluentes de uma mancha de infiltração avançavam em direção à lâmpada. A empregada se movia de um jeito nervoso entre o fogão e a mesa. Coxeava de uma perna, ele reparou.
Quando se voltou, deu de cara com o homem parado às suas costas.
Tinha se barbeado e penteado os cabelos com capricho, usava uma camisa nova de mangas compridas, calça vincada e sapatos. Recendia a sabonete de pinho.
Ele notou que, vestido daquele maneira, o homem assumia um ar solene - estava habituado a vê-lo de macacão e botinas. Parecia até mais magro vestido com aquelas roupas. E pouco à vontade.
Você quer um aperitivo, Cléber?, o homem perguntou.
E, sem esperar pela resposta, pegou uma garrafa de cachaça e dois copos no armário da cozinha.
Beberam sem brindar. O homem estalou a língua, satisfeito. Ele sentiu o ardor da bebida na garganta. Lacrimejou, tossiu. E percebeu que a empregada olhava com curiosidade para seu rosto.
Essa é da boa, o homem disse.
E serviu-se outra vez. A empregada abriu o forno e espiou o assado. O cheiro espalhou-se pela cozinha, foi capturado pelas narinas do rapaz e classificado como bom.
Podem ir sentando, a mulher disse. Tá tudo pronto.
O homem puxou a cadeira para o rapaz e, depois, sentou-se de frente para ele. Entre os dois, a empregada colocou as travessas com a comida. Por último, protegendo as mãos com um guardanapo, retirou o assado do forno. Lombo com batatas.
O homem esperou que a mulher ocupasse seu lugar à mesa e então olhou para o rosto do rapaz.
Não faça luxo. A comida é simples, mas você vai ver como a Conceição cozinha bem.
O rapaz serviu-se e derrubou arroz na toalha. Manteve a cabeça baixa, evitou olhar para o homem ou para a mulher. Sabia que ambos o observavam. Estava enganado, porém: enquanto o homem abria uma garrafa de vinho, prendendo-a entre as coxas para retirar a rolha, a empregada fatiava o lombo.
Quando terminaram de comer, a empregada levantou-se para passar um café e o homem e o rapaz foram para a sala.
Gostou da comida?
Gostei, o rapaz respondeu.
O homem sorriu, satisfeito. Então entrou no quarto e reapareceu com uma caixa embrulhada em papel de presente.
Comprei pra você, disse. Feliz Natal.
O rapaz segurou a caixa e a vontade de sair correndo dali. Estava pensando que nunca deveria ter aceitado aquele convite.
Eu não trouxe nada.
Não tem problema, o importante é que você está aqui, o homem disse. Abra o seu presente.
O rapaz abriu o pacote. Uma camisa. A empregada entrou na sala com o café. E, depois de colocar a bandeja sobre a mesa de centro, ficou parada, olhando para a camisa nas mãos do rapaz. O homem falou:
Foi ela que escolheu.
Obrigado, o rapaz disse.
A mulher sorriu de um jeito tímido. E retornou à cozinha arrastando uma das pernas. O homem e o rapaz afundaram lado a lado no sofá.
E então, você pensou no que eu falei?
Antes de responder, o rapaz curvou o corpo para frente com dificuldade e colocou a xícara sobre a mesa de centro. Ganhou tempo. E falou sem olhar para o rosto do homem.
Pensei, seu Valdemar. Não posso aceitar.
O homem suspirou.
Não pode por quê?
Não posso, só isso.
O homem se mexeu no sofá. Seu corpo tocou no do rapaz.
Você é orgulhoso que nem a sua mãe.
O rapaz o encarou.
Não é orgulho. É que eu tô pensando em ir embora.
Embora pra onde?
Ainda não sei, o rapaz disse. Vou pra uma cidade maior.
Você não precisa fazer isso. Pode ficar por aqui e ganhar a vida com a borracharia.
Eu vou embora.
O homem também colocou a xícara sobre a mesa. Balançou a cabeça.
Tem uma coisa que você não sabe.
Pronto, o rapaz pensou, lá vêm as histórias. Estava acostumado: desde menino escutava as conversas na cidade (diziam que ele era filho do borracheiro; mas ele sabia que não era). Só que o homem falou de outro assunto.
Eu tô doente, Cléber. Tenho pouco tempo de vida.
O rapaz baixou a cabeça, não soube o que dizer. O homem tocou em seu braço. Disse:
Eu já estive no cartório e passei tudo para o seu nome. Esta casa, a borracharia. É tudo seu.
O rapaz levantou-se do sofá.
Eu não posso aceitar uma coisa dessas, seu Valdemar.
Claro que pode. Eu sempre ajudei a sua mãe. E agora quero te ajudar.
O rapaz ficou em silêncio por um tempo. Pensava na mãe, que tinha morrido meses antes. Uma vez, chegara a conversar com ela sobre os boatos que ouvia.
E por que o senhor quer me ajudar?
Porque sim. Eu não tenho ninguém pra quem deixar as minhas coisas. Deixo pra você, que também não tem ninguém.
A mãe dissera que aquilo não passava de fofoca. Seu pai, ele sabia, era um engenheiro com quem sua mãe se envolvera na época em que a mineradora se instalou na cidade. Um estrangeiro. Quando mais novo, o rapaz gostava de imaginar o pai como um aventureiro. Um aventureiro que fora embora da cidade e que nunca voltara para visitá-lo.
Não posso aceitar.
Não depende de você, Cléber. Tá tudo no seu nome lá no cartório.
Nesse momento, a empregada surgiu entre as tirinhas da cortina.
Eu já vou me deitar. Se vocês precisarem de alguma coisa, é só chamar.
Obrigado, Conceição, o homem disse.
E então se levantou do sofá e ficou ao lado do rapaz. Pôs a mão em seu ombro.
Você não precisa vir morar aqui. E, depois que eu morrer, você pode fazer o que quiser com esta casa e com a borracharia.
Eu não vou aceitar.
O homem pareceu não ouvi-lo.
Só tem uma coisa: eu não quero que você deixe a Conceição na mão.
Às vezes, no dia de seu aniversário ou em ocasiões como aquela, o rapaz recebia presentes que, ele sabia, não haviam sido comprados pela mãe. Ele gostava de imaginar que o pai os enviara. O aventureiro estrangeiro.
O senhor conheceu meu pai?
O homem pensou antes de responder.
A sua mãe não falava dele pra você?
A mãe não gostava de falar do assunto, o rapaz lembrou. Parecia incomodá-la. Uma dor. E ele respeitava, evitava perguntas. Contentava-se com os fiapos que conhecia.
Eu já vou embora, seu Valdemar. Obrigado pelo jantar. E pela camisa.
O homem colocou outra vez a mão em seu ombro.
Posso te dar um abraço?
O rapaz pôs a caixa sobre o sofá e então ele e o homem se abraçaram. Ficaram assim por um tempo.
Quero que você me prometa que pelo menos vai pensar no assunto, Cléber.
O rapaz não disse nada. Limitou-se a recolher a caixa e a caminhar em direção à porta. O homem disse:
Eu não tenho muito tempo pela frente.
Quando chegou à rua, o rapaz sentiu alívio. Estava transpirando - devia ser o vinho, não tinha o costume de beber. Antes de se afastar, olhou uma última vez para a casa. Sua casa. Esse pensamento encheu-o com uma sensação que ele não soube definir.
Era cedo ainda e ele não pretendia voltar para o quarto-e-sala que ocupava nos fundos de uma casa. Onde sempre vivera com a mãe. Pensou em ir até um dos bares do centro, talvez encontrasse algum dos amigos. Não, ele sabia que os amigos estavam com suas famílias naquela hora.
Em frente a um sobrado, dois garotos brincavam com uma bola, que, num chute descuidado, veio rolando em sua direção. Uma bola nova em folha, que os garotos tinham acabado de ganhar. Ele agachou-se, recolheu a bola e a devolveu ao garoto. Depois, encostou-se num poste e permaneceu por algum tempo assistindo às brincadeiras dos garotos.
Pensou na mãe e lembrou-se de que ela sempre ficava triste em dias como aquele. Nunca soube por quê.
Então, de repente, ele se virou e retornou pela rua, em direção à casa do borracheiro. A sua casa. Ainda não sabia muito bem o que diria quando o homem abrisse a porta. Talvez dissesse apenas que voltara porque tinha se esquecido de lhe desejar feliz Natal.

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