domingo, 18 de novembro de 2007

No Cinelândia: café, porrinha e senado.

Nem bem o sol esquenta o sertão do Ceará e seu Genésio Rodrigues, vestido em sua bata branca e óculos de aro dourado, abre as portas do Bar e Lanchonete Cinelândia. Há 33 anos tem sido assim, de seis da manhã à meia-noite o Cinelândia domina o centro comercial da cidade do Crato e, não há um, entre os mais de 100 mil habitantes, que não saiba apontar a direção do Bar. O prédio em estilo Art Nouveau, erguido pelos idos de 1945, possui três andares. Naquela época ainda era o Grande Hotel, paragem obrigatória de viajantes dos estados vizinhos que iam até o Crato para comprar e vender mercadorias. Com o declínio do comércio local, o térreo foi cedido ao Bar Glória. Conta seu Jesus Rodrigues da Silva, de 88 anos, que ali era local de políticos, intelectuais e boêmios. “Já naquela época, os homens vinham até aqui para discutir política e conversar sobre qualquer coisa”. E as mulheres?, pergunto. “Não, mulher não entrava, ficavam passeando do lado de fora”. Foi-se o Bar Glória veio a Barbearia Siebra, onde até o Rei do Baião Luiz Gonzaga fez barba, cabelo e bigode. Até que, em 1974, seu Genésio, vindo do Rio de Janeiro, deu a vez ao Cinelândia. “No Rio, eu trabalhava em um bar na Cinelândia, não sabia que nome dar ao negócio, tive a idéia de botar esse e todo mundo gostou”.O Cinelândia ainda guarda o charme dos bares de antigamente, seu balcão de um azul desbotado pelo tempo e pela flanelinha de seu Genésio estende-se de ponta a ponta. Os bancos brancos não deixam dúvida que já sustentaram muita gente e as mesas e cadeiras de madeira, quadradas e compactas, são quase surreais em sua leveza e conforto. O cafezinho feito em uma cafeteira de 1982 é o produto mais vendido - em média trezentos por dia - e segundo os freqüentadores, por apenas 0,50 centavos, você pode tomar o café mais gostoso da região. Além do cafezinho, lá também se vende coxinha de galinha, pastel, sanduíche misto, caldo de carne, e as vitaminas de abacate e mamão fazem parte do cardápio que há anos permanece o mesmo. São as ditas rotinas das cidades de interior.

A freguesia
Quem passa pelo Cinelândia não vai se fartar apenas de suas delícias: o Bar está estrategicamente fincado entre a Praça Siqueira Campos e o “Calçadão” - uma rua apenas para pedestres composta por lojas comerciais, pavimentada por pedras, repetindo desenhos assim como os de sua xará famosa. A região é ponto de encontro na cidade, mas o que mais se vê por ali são homens aposentados, transitando entre a praça e o bar à procura de uma boa conversa pra passar o tempo e, ao mesmo tempo, fazê-lo durar um pouquinho mais. Esse cenário faz parte de uma cultura que permanece em algumas cidades do interior: a resistência dos espaços masculinos na cidade. Em grupos, ou pares - raro ver algum homem solitário - eles se esparramam pelos bancos da Praça e do Cinelândia e se deixam ficar pela manhã batendo papo. Algumas mulheres aparecem, mas não ficam por muito tempo. Elas estão ali de passagem ou à espera de alguém; tomam um café ou água: pedem, consomem, pagam e vão embora. Os freqüentadores dali têm em sua maioria mais de 50 anos, são de classes sociais variadas, orgulham-se de suas cabeças brancas e não perdoam ninguém. “Aqui a gente sabe das notícias antes de elas irem para a internet”, me diz Manoel Soares Martins, um juiz aposentado. “Aqui eu me sinto muito bem, conheço todo mundo, conversamos sobre política, resolvemos os problemas da cidade, do Brasil e do mundo; nem a vida alheia escapa” fala sorrindo.

Deputados e Senadores
No Bar e Lanchonete Cinelândia todos se conhecem por nome e sobrenome. A primeira pergunta que me fazem é se sou daqui e filha de quem. Depois da resposta positiva e de dar o nome de meu pai, eles abrem um sorriso, certificando-me de que acabo de ser admitida. Na mesa, além de mim e de Allan, o fotógrafo, estão quatro senhores. Eles são alguns dos integrantes do conhecido “Senadinho”. “A gente ficou conhecido como senadinho por estar todo dia aqui reunido discutindo política, o nome pegou, tivemos a idéia da placa para oficializar” conta seu Manoel Martins, fundador do grupo que já dura nove anos. Segundo o “Senadinho”, o Cinelândia é o ibope da cidade, uma espécie de termômetro na época de eleição e parece que todos ali concordam com essa afirmação. Até mesmo para a escolha do Judas na Semana Santa, é posta uma urna ali. Contrariando as opiniões que brasileiro não gosta de política, não ouvimos outra coisa e se no Cinelândia há um “Senadinho” a Praça logo adiante é a “Câmara”, lugar dos ditos “deputados”. “Mas que fique bem claro - me diz seu Manoel - aqui não existe nenhum Renan”. Além dos deputados e senadores, várias personalidades passam e passaram no Cinelândia. Zé Bedeu, que de tão famoso na cidade possui até comunidade no Orkut, figura entre as estrelas, mas não faltam nomes nacionalmente famosos nessa constelação. Cantores têm aos montes: Luiz Gonzaga, que fez show na sacada do segundo andar, Altemar Dutra, Cauby Peixoto, Orlando Silva e Nelson Gonçalves que tocou violão e ainda bebeu uma cachacinha. Castelo Branco deu uma passadinha ainda presidente, Tasso Jereissati, Cristóvam Buarque e Ciro Gomes. Sobre ele, seu Genésio conta uma história que se tornou famosa no Bar: “Era umas cinco da tarde e Ciro vindo de uma passeata, parou aqui pra cumprimentar o pessoal. Meu irmão e mais três fregueses estavam no meio de um campeonato de porrinha; ele entrou e ninguém deu bola, concentrados no jogo. Aí ele disse: 'que inveja tenho de vocês, não posso mais fazer isso' e meu irmão ainda levantou os olhos disse: 'pois é', e continuou jogando: 'um, dois, três...' Ciro saiu todo desconfiado.”

O tempo passa, o tempo voa
Mudar de mãos parece ser o destino do Cinelândia. Seu Genésio que comprou apenas o direito de comercializar no edifício, ou como diz o pessoal por aqui, a “chave”, viu seu negócio ameaçado. Meses atrás o prédio foi novamente vendido, acompanhado de uma notícia bombástica que afirmava que o Cinelândia iria ter um fim, deixando a todos aflitos. A preocupação dos freqüentadores é compreensível, já que vários edifícios históricos foram postos abaixo ao longo dos anos, tanto por seus proprietários, como através da administração pública. Assim nos conta Ulisses Germano, professor de artes, que uma rua inteira, composta por belíssimos casarões do séc. XIX adornados por azulejos portugueses, foi destruída pra dar vez à uma avenida. “E tudo isso por quê? Para abrir uma rua”, indigna-se o professor. “O desrespeito pela memória da cidade e dos cidadãos não é exclusivo do Crato, em todo o Brasil e no mundo vemos isso acontecer”, esclarece Renato Dantas, colaborador do IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - “Isso se deve às pessoas acharem que o antigo é ultrapassado, é velharia; não percebem que lugares como esse preservam a identidade local, reúnem os cidadãos, formam hábitos sociais, em uma sociedade onde a regra é a perda de valores; em lugares como esse a tradição é permanentemente renovada”.

Fátima Bernardes, só que mais simpática
Entretanto, a nova proprietária, Idalina Muniz, garante que isso é apenas boato: “Nós temos a intenção de conservar a fachada e fazer algumas mudanças para dar uma cara anos cinqüenta ao bar e permitir um espaço para a livraria que queremos colocar”.Em toda a cidade vemos em construções de diversas épocas e estilos isolados, uma pequena amostra das belezas arquitetônicas perdidas. “A insensibilidade atrelada à ignorância gera feitos dessa natureza”, define o prof. Ulisses. Ele e seus alunos da nona série do ensino médio vêm catalogando os edifícios históricos do município, através de fotos e entrevistas, “dessa forma, espero que eles compreendam a importância da preservação de construções antigas para a história deles e da cidade”, reitera o professor. A mensagem foi captada, pelo menos pela estudante Danniely Brito, que com um sorriso no rosto nos conta como foi reunir as informações pedidas pelo professor: “no começo, quando eu cheguei, estava com um pouco de medo; no bar só tem homens aí pensei que eles podiam me destratar, mas a simpatia do pessoal me conquistou, me trataram muito bem e disseram que eu era uma Fátima Bernardes, só que mais simpática”, sorri orgulhosa.Danniely segue falando da importância histórica do edifício e das várias perdas que a cidade já sofreu, “a sociedade de hoje está tão fútil que não sabe valorizar sua história, todo lugar tem uma história e se destruir a história, tudo não vai passar de lenda, algo abstrato, as novas gerações têm direito de saber de onde vieram”. A gente também pensa assim, garota!
E aí Seu Genésio, sai mais um café?

Texto publicado no site www.overmundo.com.br

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