quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Raimundo, o projecionista de sonhos


Os mais jovens devem sentir dificuldade em hoje reconhecer a pernambucana Serra Talhada, a 420 quilômetros do Recife, como baluarte do cinema no interior do Nordeste. Com 79 mil habitantes, o município é mais reconhecido por ter sido o berço do cangaceiro Lampião, que, curiosamente, viraria até filme, como Lampião, O Rei do Cangaço. Mas houve mesmo um tempo em que a população da cidade frequentava o cinema com devoção.

Para ter uma ideia, no início da década de 1950, Serra Talhada exibia duas salas cinematográficas, Cine-Art e Cineplaza, que viviam lotadas nos dias de sessão. Cada uma tinha capacidade para abrigar 500 pessoas.

Um dos artífices dessa época, o alquimista que levava às telas a magia da sétima arte no meio da caatinga, era Seu Raimundo, hoje com 70 anos. Pequenino, com um metro e meio de altura, e dono de uma voz muito grave, anda como se a vida fosse um eterno slow motion. Seu Raimundo parece intuir que a vida deveria de verdade ser assim. E conta, com calma, fumando um cigarro, parte da sua história, de quando exibia películas em um dos cinemas de Serra Talhada. E fazia chorar, e fazia rir.

Aos 15 anos, abraçou a oportunidade de trabalhar como projecionista de filmes. E pegou gosto pelo ofício. O Cine-Art veio à luz em 1952 e, três anos depois, foi que conheceu a astúcia de um garotinho franzino, de olhos fundos, tímido, que, aos poucos, foi mostrando toda a pujança das suas cordas vocais. É porque antes de Seu Raimundo começar a exibição, agarrava o microfone para revelar o nome da película. “Primeiro eu fazia o anúncio num carro de som, saía rodando a cidade. Estacionava numa esquina e via as pessoas parando para ouvir a novidade da semana.”

Como de costume, o cinema lotou. Casais de namorados aproveitavam para trocar afagos, um grupo de amigos compartilhava piadas, outros aguardavam calados, com ansiedade, a explosão imagética. De repente, um trovão avança sobre a sala de projeção: “Hoje, no Cine-Art, cinemascope colorido, filme Tarzan, com Johnny Weissmuller.” Era Seu Raimundo. Então a luz apagava, levando consigo todo o ruído da sala. E o filme ganhava vida aos olhos do público.

Toca a sirene, vai começar!

Raimundo Santana contabiliza mais de mil filmes anunciados e projetados no Cine-Art. “Era bom demais. Sempre lotava e várias vezes tive que fazer duas sessões por dia do mesmo filme”, conta. No intuito de avisar os habitantes do município de que a hora da sessão se aproximava, era costume em Serra Talhada, e nas demais cidades do interior que possuíam cinema, abrigar uma sirene no topo do prédio. Seu Raimundo, diligentemente, acionava o aparelho, que causava o maior alvoroço na população.

“Teve um dia que trouxeram de São Paulo uma corneta poderosa. Quando chegou a hora de anunciar o filme, dei corda nela e o som foi tão grande, que causou medo e veio gente do outro lado da cidade desesperada pensando que era o fim do mundo”, diverte-se, com uma gargalhada cinematográfica.

O presidente da Fundação Casa da Cultura de Serra Talhada, Tarcísio Rodrigues, foi contemporâneo das salas de cinema Cine-Art e Cineplaza. Lembra que era comum ver, em dias de matinê, o alvoroço das crianças à espera das películas. “Quantas e quantas vezes ficamos sentados na calçada à espera do filme, que estava atrasado. Esperávamos Raimundo, que havia se deslocado até a estação ferroviária, para buscá-lo”, recorda. Os filmes viajavam de trem do Recife até Serra Talhada. “Sabíamos a duração do filme pela quantidade de latas que ele trazia. Sem contar que os filmes eram em inglês, legendados. Praticamente aprendemos a ler no cinema.”

As pessoas que acompanharam o apogeu cinematográfico da terra de Lampião guardam consigo, hoje, os bons frutos gerados pela experiência. Assim, pelos filmes, Seu Raimundo conseguiu projetar sonhos na mente de crianças e jovens da região.

Flash Gordon, Perdidos no Espaço, Fu Manchu, Os Perigos de Nyoka e Capitão Marvel foram alguns dos filmes exibidos por Seu Raimundo. “Às vezes o povo saía chorando de emoção”, relembra.

Morreu!

Herança do trabalho como projecionista, Seu Raimundo continuou atuando com a voz, mas, agora, no ramo da propaganda volante, em carro de som divulgando marcas de empresas, festas e velórios. É comum vê-lo pelas ruas da cidade, agarrado ao microfone, equalizando sua voz para anunciar algo.

Entre os maiores dilemas do novo ofício, segundo ele, foi ter anunciado a morte da própria sogra. “É porque gostava mesmo dela”, confessa. Uma preocupação o movimenta: se vão anunciar em carro de som o seu falecimento. “Penso muito sobre isso. Já tentei até deixar algo gravado sobre mim. O problema é que não dá para dizer nem a hora nem o local da minha morte”, murmura, cabisbaixo.

Infelizmente os cinemas de Serra Talhada chegaram ao fim. Seu Raimundo acha que foi devido à televisão, que foi invadindo, ano após ano, desde seu advento, na década de 1950, os rincões do Brasil e transformando o gosto da população. Ele garante que sente muita saudade do tempo em que se ocupava apenas em preparar, durante horas, os rolos de filmes, até o momento da sua divulgação. Se pudesse, ainda estaria no ramo. “Cinema é bom demais; é bom demais, ave, Maria.”


Por Giovanni Alves Duarte
fonte: jornalirismo

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