"Quando a frota ancorou, em 22 de janeiro de 1808, um ar de irrealidade desceu sobre a região da baía. Para quem estava a bordo e para a multidão que se juntava nas docas, tratava-se de um evento inesperado e meio bizarro. A Família Real e a elite da metrópole - figuras distantes de autoridade para todos, com exceção dos escalões superiores da sociedade brasileira - haviam chegado, surgidas do nada. E, confundindo todas as expectativas, chegaram numa esquadra em condições muito piores que as de alguns surrados navios mercantes que atracavam naquele porto normalmente movimentado". Assim como narra Patrick Wilcken, no livro Império à Deriva. A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821, iniciava, na América portuguesa, a montagem do que iria se transformar no Estado brasileiro. As pressões advindas de uma conflituosa relação político-econômica entre França, Portugal e Inglaterra forçaram a transferência da Corte portuguesa a uma região que havia sido, por quase 300 anos, limitada ao pacto colonial, que determinava exclusividade comercial entre a metrópole e a possessão. A decisão de montar a máquina administrativa, militar e religiosa portuguesa em terras americanas evitou que a Corte do príncipe-regente, que logo se tornou dom João VI, fosse subjugada pela potência napoleônica ou perdesse o filão colonial para a Inglaterra, ambos sob a necessidade de expansão do mercado consumidor que a Revolução Industrial exigia. Wilcken descreve uma primeira reação de parte da população que viveria, a partir daquele momento, período de profundas mudanças sociais. "Parte do mistério do poder colonial foi destruído para sempre nesse dia. O apreço quase religioso em que era tida a realeza também ficou momentaneamente abalado. Quem já fôra exposto às idéias revolucionárias que então varriam a Europa e as Américas teve muito o que pensar, ao ver aqueles refugiados de alta classe chegando em situação de penúria a uma de suas próprias colônias". Duzentos anos depois, estudiosos, imprensa e outros setores da sociedade relembram um marco da história brasileira. Historiadores chegam a falar que 1808 pode representar uma redescoberta do Brasil. De fato, a estruturação da América portuguesa como abrigo da Corte metropolitana e a elevação da colônia a reino unido contribuiu para alavancar as relações econômicas e culturais entre os continentes. No entanto, acadêmicos não se arriscam a apontar a data como o início da sociedade brasileira, resguardando o título a somente após a Independência do País, proclamada só em 1822. A professora titular do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP) e do programa de Pós-Graduação em História Social da USP, Cecília Lorenzini, aponta que a vinda da Família Real ao Brasil provocou uma inversão política no interior do Império português. "Isto representou uma alteração nas políticas de investimento e de gestão do governo joanino e provocou profundo reajustamento nas relações econômicas e políticas entre os setores proprietários coloniais e grupos dirigentes em Portugal", diz. A noção de identidade brasileira, porém, viria depois. SERVIÇO Dois séculos após o aporte dos navios portugueses na Bahia, O POVO inicia uma série de matérias discutindo a chegada da Família Real portuguesa. As reportagens traçarão uma leitura de como a política, a cultura e a economia foram delineadas num período de intensas mudanças que gerariam a formação de um Brasil Pátria e em que medida as heranças desse tempo compõem a sociedade brasileira.
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