terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Preguntado

A reunião na Câmara de Matozinho, naquele dia, pegou fogo., Os vereadores, acostumados àquela morrontice de sempre, afeitos à outorga de títulos de cidadania e á comilança por dentro, para liberação de matérias do executivo, naquele dia se engalfinharam e quase iam às vias de fato. O conflito começou com o vereador Saturnino Bilhar, mais conhecido como “Sasá-Cadê-o-Meu” apresentou projeto pela proibição explícita do uso e porte de fundas, baladeiras e bodoques, bem como da munição: caco de telha, pedras, mamonas, xibius e bilros em todo o município de Matozinho. Nas suas alegações, no caput do projeto, o legislador lembrava que o porte e uso destas armas vinham trazendo sérios problemas à vila. Semana passada, meninos tinham baleado o papagaio do Coronel Felismino Saturnino, com tamanha peçonha, que se o velho não tivesse botado, prontamente, o bichinho debaixo de uma cumbuca e batido, o currupaco não teria recobrado a saúde. Sem falar numa bilrada perdida que D. Vicentina, a mais sistemática educadora da cidade, tinha sofrido, dias atrás, por parte de um aluno que tentava acertar uma inhambu no olho de uma carajana. Sasá elencava, ainda, inúmeros outros conflitos como justificativa do seu projeto, lembrando que Matozinho tinha se transformado no paraíso das pedradas perdidas e achadas, com inúmeros prejuízos: mangas de candeeiros quebradas, cocuruto de menino esfacelado, velho caxingando, capotes e pintos atingidos. Sem falar no impacto ambiental: pereiros derrubados para fazer bodoques, cipós de marmeleiros quebrados prematuramente para construir “canários”, galhos arrancados para se transformar em cambito de baladeira, passarinhos mortos à granéu.

Assunto polêmico dividiu rapidamente os legisladores conforme os interesses de cada um: Zeca Traíra tinha uma bodega nos arredores de Bertioga onde vendia todas as armas citadas e mais seus implementos; Pedro Jurubeba possuía uma borracharia e negociava câmara de ar velhas; para confecção dos elásticos das baladeiras, e , ligeiro, se posicionaram contra o projeto bem como Bebeto Gavetinha, caçador contumaz. Do outro lado Cacá Marcolino, filho do Coronel, dono do papagaio, e o velho Tadeu Saturnino, esposo da professora baleada, D. Vicentina, se posicionaram a favor do desarmamento. Câmara de sete vereadores o voto de minerva caiu nas mãos do presidente Clodoveu Macanbira que, temendo a responsabilidade, pediu vistas para poder combinar com o prefeito, seu correligionário, e juntos, averiguarem o impacto político que aquela tomada de posição traria ao partido. As eleições já se vislumbravam para o próximo ano.

A decisão de Clodoveu não podia ter sido mais sábia. Rápido a cidade tomou conhecimento do projeto de desarmamento e entrou em conflito. As discussões vararam noite e muito frequentemente terminaram em brigas descomunais. Tiravam a baladeira do pobre, mas os coronéis iam continuar com os cruzetas e papos-amarelos dentro do guarda-roupa. O menino não podia usar o bodoque, mas o bêbado ia carregar a lambedeira de doze polegadas na cintura. Proibindo o porte de xibius para os bodoques, as meninas não mais poderiam jogá-los na calçada. Neguinho saísse para tomar banho, levando o caco de telha par atirar o ceroto, poderia ser preso por posse de suposta munição. Num ponto todos tinham razão: não se fazia nada fácil a regulamentação da lei. Se se pensasse bem, dizia o velho Firmino, a medida não teria nenhum valor. Do outro lado, porém , existia o grupo auto-entitulado “Sabiás de Bertioga” que defendia, intransigentemente, em nome da paz da cidade e da floresta, a lei apresentada por Sasá-Cadê-o-Meu”. Os espíritos encontravam-se tão conflagrados que Clodoveu ,de comum acordo com o prefeito, resolveu-se por uma saída tangente. Os dois conversaram com o advogado Lemlém-dobra-juiz que lhes forneceu o artifício jurídico de que precisavam: fazer um “Referendo”, uma eleição na cidade sobre a viabilidade ou não do projeto de Sasá. Clodoveu e o prefeito aceitaram de pronto, só acharam o nome complicado e o mudaram de “Referendo” para “Preguntado”. O foco da discussão política foi desviado e entregue a responsabilidade da população. O projeto de Sasá foi aprovado, no “Preguntado”, por uma pequena margem de votos.

Passados alguns meses, ânimos serenados, as pedradas continuam a cruzar os céus de Matozinho. A cadeia está cheia de meninos presos por porte ilegal de armas. Tiveram até que soltar um ladrão de botija, preso semana passada, por falta de lugar para botar o homem., Os passarinhos continuam sendo pegos, agora, em alçapão ou chaprão, como diz o matuto. Os cipós continuam sendo quebrados para fazer, agora, arapucas. As baladeiras foram substituídas por armas de maior poder de impacto como rebolos e tijoladas. Sasá saiu-se bem do “Preguntado”, tanto política como economicamente, fez uma pequena fábrica de bestas e flechas, nos fundos de sua casa e tem vendido como nunca.


Zé Flávio Vieira
Texto publicado em seu mais novo livro Matozinho vai à Guerra
(jornal Contraponto

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