quarta-feira, 5 de novembro de 2008

ARTIGO: MEU BAÚ DE OSSOS E O COLÉGIO AGRÍCOLA DO CRATO



Há muitos anos, ainda nos idos de 1985, século passado, outro milênio...
Tive um grande amigo, poeta tímido,
tanto quanto eu – calado, introspectivo.
Razoável domínio do vernáculo, quase um espert idiomático. Mostrou-me seus poemas hai-kai, dísticos, cordéis, sonetos...
Disse-lhe que tinha jeito para poeta.
Ele aquiesceu num sorriso raro e cabisbaixo.
Trejeito impávido, sisudo, míope da vista,
óculos fundo de litro...
Inteligente via muito além das lentes.
Era um exímio construtor do estro.
Por intermédio da literatura, discutíamos a rotina da vida,
a monotonia do colégio e as coisas do mundo.
Era como se diante dos livros nos fizéssemos gigantes.
Titãs poemáticos...que escolheram a literatura como um caminho.
Mostrei-lhe meu opúsculo na época, ainda em rabisco.
Ele admirou-se e em seguida ficamos bons amigos.
Lemos, estudamos, escrevemos, biblioteca farta, assim como a nossa juventude.
Dali para frente a poesia libertou-nos do medo de sermos chamados de poetas. Achávamos por demais ridícula aquela afirmação. Ser diferente não era o nosso desiderato.
O que queríamos era simplesmente nos embriagar da eterna poesia de Lorca, Neruda, Bandeira, Poe, Augusto, Florbela, Vinícius, Patativa, Rimbaud, Drumond, Quintana, Baudelaire, dentre outros...
Porém, não demoraria muito para que a professora
nos delatasse à turma inteira.
Com direito a leitura dos nossos primeiros madrigais.
Marcial Ferreira era seu nome, filho do Ipaumirim,
para o qual fizera um soneto. Verdadeiro hino oferecido a sua Alagoinha. Tempo áureo do nosso Agrícola Colégio.
Internato para os primeiros, utopia para nós todos.
Chão fértil e rico das serras do Crato-CE; sopé do Araripe. Tempos idos, pleno de lirismo e sonhos em se mudar o mundo.
Saudade de casa e da namorada,
que quase nunca nos escrevia.
Trabalho árduo, enxada, regador, calos nas mãos.
Estudo noturno obrigatório, dias de cansaço e solidão. Bucólico esforço, ideal parasidíaco. Sofreguidão!
Mata virgem, virgens meninos e meninas,
virgem poética adormecida
nos nossos cadernos de exercícios.
Os anos se passaram. Fim do período...
Cada um seguiu para o seu lado.
O mundo depois disso pareceu-me muito mais imenso:
geodésico sentimento que eu ansiava pegar
com as minhas próprias mãos.
Nunca mais tive notícias dele.
Não sei se vive ou se a vida se desfez do mesmo.
Quem sabe aquele amigo tenha optado por se encantar
de vez na serra do Crato, junto a sua poesia -
a musa que nos fez acreditar nos sonhos e outras utopias.
Ou ainda, quem sabe, mergulhara no seu poema mais triste
à guisa de se proteger de um mundo ingrato.
Como só seria possível a um poeta-amigo, vate singularíssimo da palavra, na mais humana disposição lídima do gesto.
O Agrícola agora, assim como ele(meu amigo), é uma miragem estranha perdida nas brumas de um passado longínquo.
O tempo passou célere como sempre passam os bons
momentos. Século pretérito...
Deixando uma história de sonhos 'profissionalizantes' aprisionada no futuro do presente.
As coisas mudaram de lugar, como de aparência e de sentido. Assim como todos os colegas do velho colégio.
Nossos mestres, alguns desapareceram para sempre.
Restando apenas a saudade e os conhecimentos perpetuados entre seus discípulos.
As árvores cresceram como se nelas se eternizassem
todas as primaveras e a brancura teimosa dos nossos cabelos.
Sulcos nos caminhos, rugas profundas dos nossos rostos
como se fossem ainda hoje, as nossas idas e vindas
sobre as serras verdejantes do belo Crato.
A poesia por seu turno, deu sentido e um colorido especial à vida. Como um acerto de conta do presente com o passado.
A ampulheta do tempo fincou nos nossos rostos de pedra,
uma indisposição estética para a juventude.
Nossos semblantes agora travam todo dia um novo combate com os espelhos.
Como se o juizo final acontecesse numa sucessão irreversível todas as manhãs na nossa face.
Somos por isso agora, grandes desconhecidos íntimos,
perdidos na multidão de nós outros.
Quisera apenas que aquele poeta-amigo do velho Colégio Agrícola do Crato pudesse ao menos saber que a poética, assim como as lembranças, ainda permanecem comigo,
como frases perdidas nas páginas soltas e amareladas de uma coletânea de reminiscências guardadas num baú de ossos.
Uma obra carcomida e ultrapassada que quase ninguém tem mais coragem de relê-la.
Quisera saber do meu amigo, para finalmente abraçá-lo forte e poder dizê-lo que aquela minha poesia lírica e utópica agora virou verdades, esperanças e livros.
Recordações de um passado que nunca passa...
E que se mantêm guardada para sempre no fundo das nossas memórias.

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José Cícero
Aurora - CE.

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