Não há mito construído sem sangue. No caso da sempre controversa figura de padre Cícero Romão Batista (1844-1934), o sangue do povo simples do sertão. E uma parte saiu da boca da beata Maria de Araújo, quando o sacerdote lhe entregou uma hóstia; outra parte foi derramada no chão belicoso daquele Juazeiro do Norte em inícios do século XIX, com a guerra em 1914, que opôs as oligarquias locais ao Governo Federal.
Esses eventos místico-políticos, que fizeram a complexidade de um dos nomes mais importantes para o Ceará, estão analisados no livro Milagre em Joaseiro, do norte-americano Ralph Della Cava, 80 anos, que terá reedição a ser lançada este mês pela Companhia das Letras. A pesquisa, fruto de seu doutorado, chegou às prateleiras primeiro em inglês, no início da década de 1970, e depois, em 1977, teve sua edição brasileira.
A obra, considerada um divisor de águas nos estudos sobre “Padim” e suas áreas de interesse e atuação, foi o primeiro livro a colocar o tema sob uma lente desapaixonada. Della Cava trouxe Cícero à ótica mais científica, digamos assim, da sociologia. A pesquisa começou em 1963, período em que o Brasil fervilhava num ambiente pré-golpe militar, acompanhado por ele quando esteve no Rio.
Mudou-se para Juazeiro do Norte, na região do Cariri cearense. Na bagagem, junto consigo, havia também um filho pequeno e outro na barriga da esposa - que veio ter a bebê em Fortaleza. Della Cava foi o primeiro a acessar documentos do baú da Diocese do Crato, até então inéditos.
“Tive responsabilidades, além desta curiosidade intelectual, sobre algo que desafiava à primeira vista a compreensão. E não era tanto o Padre Cícero, mas a briga em torno dele. E em quê se baseava o conflito, era essa a minha pergunta. Porque atrás de toda briga tem uma constelação de interesses”, afirmou Della Cava ao O POVO, em agosto de 2004.
Para a coordenadora da Pastoral Diocesana de Romaria (Crato) e doutora em Psicologia da Religião, a irmã Annette Dumoulin, o pesquisador não reduziu Cícero a seu lado político. “Ele mostra que Padre Cícero foi mais do que um político. Foi uma personalidade que soube com uma autoridade político-mística ter uma influência muito maior do que se vivia até aquele momento”, analisa.
Della Cava aponta que o Padim Ciço dos milhares que percorrem Juazeiro do Norte todos os anos para render graças a ele e cumprir promessas é oriundo também das circunstâncias. Mais até do que devido a características eminentemente excepcionais inerentes ao personagem. Era um padre simples do Interior com excelente traquejo social. Ou seja: Cícero estava no lugar, no tempo certo, com o carisma certo. Sua influência teve repercussões em todo o País.
Professor aposentado do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Columbia, em Nova York, Della Cava, ao longo da pesquisa, investigou o papel da cidade onde Cícero atuou para a compreensão do que somos - muito além das fronteiras do Ceará. “Juazeiro é a janela, o prisma, sobre a verdadeira história da república do Brasil e sobre os fluxos do capitalismo moderno. Juazeiro faz parte, não é marginal na história deste país. Juazeiro é a história do Brasil”, disse.
Saiba mais
O suposto milagre da hóstia convertida em sangue na boca de Maria de Araújo aconteceu em março de 1889. O episódio foi testemunhado por outras beatas. Sabiamente, Padre Cícero enxugou o sangue com uma toalha. Anos depois, em 1898, Padre Cícero teve que ir a Roma se explicar com o Papa.
A Juazeiro do Norte contemporânea é fruto da grande repercussão que a figura de Padre Cícero angariou em todo o Nordeste. Ele chegou lá em 1872, quando a capela do lugar pertencia ainda a um distrito do Crato.
jornal O Povo
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