quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

'Milagre em Joaseiro', livro de Ralph Della Cava, ganha nova edição

Não há mito construído sem sangue. No caso da sempre controversa figura de padre Cícero Romão Batista (1844-1934), o sangue do povo simples do sertão. E uma parte saiu da boca da beata Maria de Araújo, quando o sacerdote lhe entregou uma hóstia; outra parte foi derramada no chão belicoso daquele Juazeiro do Norte em inícios do século XIX, com a guerra em 1914, que opôs as oligarquias locais ao Governo Federal.

Esses eventos místico-políticos, que fizeram a complexidade de um dos nomes mais importantes para o Ceará, estão analisados no livro Milagre em Joaseiro, do norte-americano Ralph Della Cava, 80 anos, que terá reedição a ser lançada este mês pela Companhia das Letras. A pesquisa, fruto de seu doutorado, chegou às prateleiras primeiro em inglês, no início da década de 1970, e depois, em 1977, teve sua edição brasileira.

A obra, considerada um divisor de águas nos estudos sobre “Padim” e suas áreas de interesse e atuação, foi o primeiro livro a colocar o tema sob uma lente desapaixonada. Della Cava trouxe Cícero à ótica mais científica, digamos assim, da sociologia. A pesquisa começou em 1963, período em que o Brasil fervilhava num ambiente pré-golpe militar, acompanhado por ele quando esteve no Rio.

Mudou-se para Juazeiro do Norte, na região do Cariri cearense. Na bagagem, junto consigo, havia também um filho pequeno e outro na barriga da esposa - que veio ter a bebê em Fortaleza. Della Cava foi o primeiro a acessar documentos do baú da Diocese do Crato, até então inéditos.

“Tive responsabilidades, além desta curiosidade intelectual, sobre algo que desafiava à primeira vista a compreensão. E não era tanto o Padre Cícero, mas a briga em torno dele. E em quê se baseava o conflito, era essa a minha pergunta. Porque atrás de toda briga tem uma constelação de interesses”, afirmou Della Cava ao O POVO, em agosto de 2004.

Para a coordenadora da Pastoral Diocesana de Romaria (Crato) e doutora em Psicologia da Religião, a irmã Annette Dumoulin, o pesquisador não reduziu Cícero a seu lado político. “Ele mostra que Padre Cícero foi mais do que um político. Foi uma personalidade que soube com uma autoridade político-mística ter uma influência muito maior do que se vivia até aquele momento”, analisa.

Della Cava aponta que o Padim Ciço dos milhares que percorrem Juazeiro do Norte todos os anos para render graças a ele e cumprir promessas é oriundo também das circunstâncias. Mais até do que devido a características eminentemente excepcionais inerentes ao personagem. Era um padre simples do Interior com excelente traquejo social. Ou seja: Cícero estava no lugar, no tempo certo, com o carisma certo. Sua influência teve repercussões em todo o País.

Professor aposentado do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Columbia, em Nova York, Della Cava, ao longo da pesquisa, investigou o papel da cidade onde Cícero atuou para a compreensão do que somos - muito além das fronteiras do Ceará. “Juazeiro é a janela, o prisma, sobre a verdadeira história da república do Brasil e sobre os fluxos do capitalismo moderno. Juazeiro faz parte, não é marginal na história deste país. Juazeiro é a história do Brasil”, disse.

Saiba mais
 O suposto milagre da hóstia convertida em sangue na boca de Maria de Araújo aconteceu em março de 1889. O episódio foi testemunhado por outras beatas. Sabiamente, Padre Cícero enxugou o sangue com uma toalha. Anos depois, em 1898, Padre Cícero teve que ir a Roma se explicar com o Papa.
A Juazeiro do Norte contemporânea é fruto da grande repercussão que a figura de Padre Cícero angariou em todo o Nordeste. Ele chegou lá em 1872, quando a capela do lugar pertencia ainda a um distrito do Crato.
jornal O Povo 

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