domingo, 2 de março de 2014

Legislação que criminaliza gays em Uganda e norma discriminatória no Arizona são sinais de retrocesso nos direitos dos homossexuais, avalia pesquisadora


Os que ainda acreditam na história como a luta progressiva da civilização contra as forças do atraso são frequentemente desmentidos pela realidade. Na última semana, sinais inquietantes dessa incerteza surgiram de um lado a outro do oceano Atlântico. Em Uganda, na África Oriental, o presidente Yoweri Museveni assinou na segunda-feira uma legislação antigay que eleva as penas para quem praticar atos sexuais "contra a ordem da natureza" até a prisão perpétua.


O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, havia alertado em um comunicado emitido dias antes, que a lei seria, "mais do que uma afronta e um perigo para a comunidade gay em Uganda, um passo atrás para todos os ugandenses". Em vão – e ali mesmo, debaixo dos caracóis de Obama, por pouco uma norma discriminatória não era aprovada no Arizona. Após pressões de entidades de direitos humanos, a governadora republicana Jan Brewer vetou na quarta-feira a lei que permitiria a donos de estabelecimentos comerciais se negarem a atender gays, lésbicas ou transgêneros por "motivos religiosos".
"Os ataques às minorias e a criação de uma situação de pânico moral são táticas populistas clássicas, com o objetivo de mobilizar a base política e obter vantagens eleitorais", afirma, em referência a ambos os episódios, de Uganda e do Arizona, a advogada e cientista política canadense Françoise Girard. Presidente da International Women’s Health Coalition (IWHC), entidade sediada em Nova York que atua na promoção dos direitos humanos e da sexualidade na África, Ásia, América Latina e Oriente Médio, Girard descreve um cenário de avanços e recuos nas lutas contra a intolerância no mundo.
Na entrevista a seguir, a ativista afirma que a primeira "colonização cultural" da África ocorreu no século 19, quando as leis antissodomia foram levadas ao continente pelos britânicos, denuncia papel semelhante exercido hoje por missionários evangélicos norte-americanos, critica o paternalismo com que os africanos são tratados até por seus supostos defensores e explica por que a causa dos direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros (LGBT) está organicamente ligada à emancipação feminina. "O corpo ‘fora do padrão’ ameaça profundamente as normas patriarcais não só na África, mas no mundo todo."
A lei antigay é um ponto fora da curva na história de Uganda?
FRANÇOISE GIRARD - O presidente Museveni lança mão da criminalização de condutas homossexuais no país desde que chegou ao poder, em 1986. O artigo 145 do Código Penal ugandense endureceu em 1990, com a pena para a chamada "conjunção carnal contra a ordem da natureza" podendo chegar à prisão perpétua. No ano 2000, o artigo passou a ser aplicado também às mulheres. E a lei foi usada para constranger lésbicas, gays e ativistas, ameaçando prendê-los e perseguindo-os em suas casas e no trabalho. Museveni e seus funcionários utilizaram-se desse expediente para justificar seu fracasso em apoiar esforços de prevenção da aids entre homossexuais masculinos. Em 2009, uma lei antigay foi apresentada ao Parlamento, prevendo até mesmo a pena de morte para os condenados por "homossexualidade agravada", que falava em gays "criminosos em série" e abrangia portadores de HIV que se relacionassem com pessoas do mesmo sexo. Foi a chiadeira internacional que impediu, naquele momento, a aprovação da lei, mas os parlamentares prometeram voltar à carga com uma nova versão.
Essa que acaba de ser aprovada...
FRANÇOISE GIRARD - Exatamente. A lei antigay recém-assinada pelo presidente Museveni apenas trocou a pena de morte pela prisão perpétua. E agora ela se aplica não só a quem demonstre "homossexualidade agravada", mas a qualquer ato sexual entre pessoas do mesmo sexo. Pior: assim como a lei de 2009, a atual define o crime de "promoção da homossexualidade" de tal forma que qualquer pessoa ou grupo que defenda os direitos da comunidade LGBT se arrisca a pegar de 5 a 7 anos de prisão. Estamos testemunhando uma significativa escalada da criminalização dos gays e seus simpatizantes em Uganda.
O líder da oposição, coronel Kizza Besigye, diz que a nova lei é apenas uma cortina de fumaça usada pelo governo de Uganda para tirar as atenções dos graves problemas do país. A sra. concorda?
FRANÇOISE GIRARD - Sim. O uso de ataques às minorias e a criação de uma situação de pânico moral são táticas populistas clássicas, com o objetivo de mobilizar a base política e obter vantagens eleitorais. É também o caso dos Estados Unidos. Na última semana, o Estado do Arizona chegou muito perto de aprovar uma lei que iria permitir a qualquer negócio, como um restaurante ou uma loja, se negar a servir gays e lésbicas por motivos religiosos. Felizmente, a proposta foi vetada pela governadora (a republicana Jan Brewer). Curiosamente, nem um único legislador do Arizona foi capaz de explicar de que maneira atender uma pessoa gay num restaurante contraria a liberdade religiosa. Voltando ao caso de Uganda, é importante notar que, ao mesmo tempo que aprovou a lei antigay, o Parlamento adotou a chamada Lei Anti-Pornografia para proibir o uso de minissaia e "roupas indecentes". O assédio e as restrições a mulheres faz parte do mesmo movimento que ataca a comunidade LGBT.
O International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association (Ilga) diz que 78 países têm hoje legislações que criminalizam a atividade sexual de minorias – um número impressionante. É confiável?
FRANÇOISE GIRARD - Acredito que a informação da Ilga seja confiável. Mas eu acrescentaria que existem ainda mais países que não proíbem a discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero em seus códigos civis – o que deixa pessoas do grupo LGBT sem alternativas quando recebem uma negativa de emprego ou são impedidas de alugar um apartamento por causa de sua orientação sexual.
O presidente Yoweri Museveni afirmou que a lei era necessária porque o Ocidente ‘promove a homossexualidade na África’ – como se fosse uma nova forma de colonização cultural do continente. Como a sra. responde ao argumento?
FRANÇOISE GIRARD - É importante lembrar que leis proibindo atos homossexuais foram levadas para as ex-colônias britânicas da África, Ásia e Caribe justamente pelos colonizadores. Veja que, no caso de Uganda, o artigo 145 do código ugandense, ao qual me referi, toma como base um artigo semelhante inserido pelo Império Britânico no Código Penal indiano de 1860 – o famigerado artigo 377. E, enquanto Inglaterra e País de Gales revogaram suas leis contra a homossexualidade em 1967, Uganda e muitas ex-colônias britânicas continuam penduradas nelas. A verdade é que a primeira "colonização cultural" da África aconteceu no século 19, quando as leis antissodomia foram levadas ao continente pelos britânicos. A segunda está ocorrendo agora.
De que maneira?
FRANÇOISE GIRARD - A segunda colonização cultural é o trabalho de cristãos evangélicos oriundos dos EUA, que chegam para apoiar esses ataques contra as populações LGBT em toda a África e em outros continentes. São eles que estão por trás da nova lei de Uganda e também a da Nigéria. Esse é o tema de um excelente e poderoso documentário do diretor Roger Ross Williams, Deus Ama Uganda (2013) – que registra a campanha evangélica para declaradamente "mudar a cultura africana" com valores importados da direita cristã norte-americana.
Um dia depois do anúncio do presidente Museveni, o jornal ‘Red Pepper’, de Uganda, publicou uma lista com 200 supostos homossexuais do país. Quão forte é o apoio da imprensa e da sociedade civil a esse tipo de lei?
FRANÇOISE GIRARD - A publicação de uma lista como essa é, para mim, o crime real. Na última vez em que uma lista de "gays" foi publicada em outro tabloide sensacionalista, David Kato, um professor e ativista gay nomeado na lista, foi assassinado. Poucos dias após a aprovação da lei, já recebemos relatos de ataques de grupos de "vigilantes" ou justiceiros a gays ou pessoas identificadas como tal. Eu tive uma experiência pessoal com o Red Pepper: poucos anos atrás, eles publicaram a localização de um encontro de profissionais do sexo com alguns colegas ativistas de direitos humanos em Kampala. Os participantes literalmente tiveram que ser retirados do país em ônibus após ameaças de agressões.
Apesar dessa escalada da intolerância, ativistas LGBT, de Uganda à República dos Camarões, passando pelo Zimbábue e pela Nigéria, têm ampliando sua presença no debate público, não?
FRANÇOISE GIRARD - Sim, há um movimento crescente pelos direitos LGBT na África e em todo o mundo, exigindo um tratamento de dignidade e respeito. Existe também um forte movimento de mulheres contra a violência e a discriminação e pelo controle sobre seu próprio corpo, reprodução e sexualidade. E existe um paralelo claro entre essas duas lutas, como eu já disse. O corpo "fora do padrão" de gays, lésbicas ou transgêneros ameaça profundamente as velhas normas patriarcais em todo o mundo. E é nesse contexto que se insere a batalha pelo direito ao aborto.
A chefe de Relações Exteriores da União Europeia, Catherine Ashton, se disse 'profundamente preocupada' com a situação em Uganda, e o presidente Barack Obama alertou que a lei antigay vai 'complicar' as relações dos países da África Oriental com Washington. Foram reações suficientes?
FRANÇOISE GIRARD - Temos que levar em consideração a opinião dos ativistas locais. Em Uganda, há pontos de vista divergentes sobre a eficácia desse tipo de pressão feita pela Europa e os EUA. Em alguns casos, ela pode ser contraproducente e gerar mais raiva e rejeição populares ao movimento LGBT. Quando uma lei semelhante foi assinada na Nigéria, ativistas chegaram a nos pedir que não fizéssemos uma ampla campanha contra a adoção da lei, pois o tiro podia sair pela culatra. Solidariedade internacional é crucial, mas é preciso antes saber ouvir o que os ativistas locais estão pedindo.
Em janeiro, o célebre escritor queniano Binyavanga Wainaina saiu do armário em um artigo de grande repercussão internacional. Qual a importância desse tipo de atitude na luta por direitos das minorias?
FRANÇOISE GIRARD - São gestos extremamente importantes. Quando sua irmã, seu vizinho, um amigo, o professor, o médico ou o artista que você admira se declaram gays, torna-se impossível demonizá-los.
O mesmo Wainaina é autor de um artigo demolidor publicado na revista Granta: 'Como Escrever Sobre a África'. No texto, ele recusa os clichês com que escritores e analistas do Ocidente ainda hoje enxergam a África. É possível defender os direitos humanos nesses países sem adotar uma postura paternalista?
FRANÇOISE GIRARD - O ensaio de Wainaina é leitura obrigatória. De fato, o velho clichê do "salvador branco" que vem resgatar a África continua muito vivo. Para não cair nessa armadilha paternalista, temos que trabalhar juntos em verdadeira parceria. Só assim se reforça a solidariedade pelos direitos humanos. Participe com respeito das conversas. Pergunte. Ouça. Aprenda. Entenda. Isso não significa que seja possível "relativizar" os direitos humanos, por exemplo, em nome da cultura ou da religião local – igualdade e não discriminação dizem respeito a algo específico em direitos humanos internacionais; são direitos de que todos os seres humanos gozam, onde quer que eles vivam e sejam eles quem forem. São esses os valores pelos quais devemos lutar.

fonte: Estadão 

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