domingo, 2 de março de 2014

Tragédia e solidão no espaço cósmico


Após seis anos de incansável e dedicado trabalho, Alfonso Cuarón consegue colocar na tela a epopeia espacial que imaginara desde a época em que filmava "Filhos da Esperança" (2007). "Gravidade" não é nada menos do que o grande filme do cinema moderno, no qual ideia de projeto e concepção de obra cinematográfica se concretiza harmoniosamente como realização humana.
Não será exagero classificar "Gravidade" como uma obra-prima, tal a forma como postula a ciência e a fragilidade e grandiosidade realidade humana. Vou repetir: somente os grandes filmes têm esse poder de cutucar as pessoas como "Gravidade" faz em nossas emoções e sentidos. Há dois aspectos fundamentais que fazem do longa uma obra diferente das saídas do interior da fábrica de mesmices de Hollywood.
Digamos que "Gravidade" esteja promovendo uma premonição com relação ao lixo espacial que gravita em torno do planeta e sobre o qual o astrofísico Donald J. Kessler formulou, em 1978, uma teoria - que ficou conhecida como "a síndrome de Kessler" - em que a colisão de um detrito com o lixo espacial que gravita em torno da Terra gerará um efeito em cascata que perdurará por anos ou décadas, ameaçando os satélites e estações espaciais e impedindo ou atrasando as viagens espaciais.
Utilizando a teoria como realidade, Cuarón a aproveita para promover uma metáfora sobre uma questão humana. Tem o exterior e o interior. O exterior, o espaço deslumbrante; o interior, o ser humano e o seu íntimo, sentimentos e emoções prestes a serem postos à prova.
Em entrevista, Cuarón afirmou que a temática de sua obra é a superação da adversidade. Este é um fato definido pelo realizador do filme e, portanto, dele não se deve sair. Mas, a sua criação formula outros pensamentos. Ficando com a afirmação do diretor, revisamos: o grande tema de "Gravidade" é o ser humano, mais especialmente o seu interior. O externo é aquilo que pode afetá-lo. Assim sendo, o espaço que envolve a Terra serve como uma metáfora para aquilo que o homem sempre quis conhecer, e, para isso, construiu as naves e as estações espaciais. E quando a "síndrome de Kessler" se torna realidade e deixa um homem e uma mulher em luta pela sobrevivência, "Gravidade" adentra ao interior dos personagens.
Sentidos e emoções
Somos seres brilhantes, capazes de construir uma civilização, aparelhos para perscrutar o universo, naves e estações espaciais para subir até lá, mas extremamente frágeis na arte de administrar internamente as ações que, vindas do exterior, exigem reações - e quase sempre não sabemos lidar com elas. A principal personagem do longa, Ryan Stone, sente isso na pele. Vivida por uma sensível e notável Sandra Bullock, Stone, ao longo de suas conversas com o parceiro espacial, o experiente astronauta Matt Kowalski (George Clooney), revela, no espaço, aquilo que não resolveu na Terra: lidar com perdas de pessoas queridas. Eis aí o drama humano. Já Kowalski, ao contrário, aparenta ser mais psicologicamente forte.
A afirmação de Cuarón está expressada até a cena em que Ryan, dentro de uma das naves, descansa em posição fetal. É o seu renascimento, após superar todas as dificuldades encontradas para chegar até ali. Cuarón obtém, com "Gravidade", uma expressiva vitória das boas ideias. Uma história fascinante sobre a superação humana à sua própria tragédia.
Tocando na ambiguidade, trafegando pelo existencialismo e recorrendo ao metafísico, "Gravidade" é uma poderosa obra filosófica. E, quem sabe, premonitória. Um dos grandes filmes do ano.
Pedro Martins Freire
Crítico de cinema

Diário do Nordeste

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