quarta-feira, 29 de junho de 2016

Alvo da Polícia Federal, Lei Rouanet reflete má distribuição de renda do País

No centro da Operação Boca Livre, da Polícia Federal, a Lei Rouanet divide opiniões. O debate é acalorado nas redes sociais, e especialistas são categóricos ao dizer que a situação em que a legislação se encontra é resultado da falta de fiscalização do Estado nesses 25 anos de atuação.
 
Criada no governo Fernando Collor, a Lei de Incentivo à Cultura se baseia na política de incentivos fiscais em que pessoas físicas e jurídicas aplicam parte do Imposto de Renda em ações culturais.
 
A ex-secretária de Cultura do Ceará, Cláudia Leitão, reconhece a importância da lei para artistas e, também, para equipamentos culturais, lembrando a reforma do Theatro José de Alencar, realizada de 2013 a 2014. Para ela, a Lei Rouanet reflete a concentração de renda que há na região Sudeste do País. "Diabolizar a legislação por ela propriamente dita é uma visão maniqueísta. (A lei) repete a concentração de acesso, renda e de oportunidade que é a cara do Brasil", afirma. "O que está havendo só revela que as políticas culturais são frágeis e que falta presença do Estado para retificar de forma transparente".
 
A antropóloga, que negou convite do presidente em exercício Michel Temer para assumir a Secretaria de Cultura, em maio deste ano, reitera que é preciso fiscalização. "São recursos nossos. Esse dinheiro tem que ser acompanhado até o final e precisa ter função social. Não é só implantar uma política", continua. "Mas monitorar e avaliar para que não haja distorções e que esses recursos sejam democráticos".
 
Cláudia Leitão recorda o Projeto de Lei nº 6.722, que tramita desde 2010 e aguarda votação no Senado Federal. O texto prevê a criação do Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Procultura), que regionaliza os recursos de fomento à ações culturais. Junto à PL, houve tentativa de rever a Lei Rouanet. Ela afirma que o Procultura ainda não foi aprovado "porque envolve interesses estruturais". Segundo ela, a aprovação "não é de interesse do Congresso Nacional". 
 
Eixo Rio-São Paulo
 
No último mês de maio, o ministro da Cultura, Marcelo Calero, sinalizou uma possível discussão a respeito do Procultura. Para o cineasta e diretor do Festival Cine Ceará, Wolney Oliveira, um dos pontos positivos da PL é abrir um debate sobre o excesso de concentração de projetos no eixo Rio-São Paulo. "O que vai pro resto do Brasil são migalhas. Sem a Lei Rouanet, o Cine Ceará e o Festival de Jazz & Blues não existiriam". 
 
Estudos apontam que, apenas nesses dois Estados, a concentração de recursos captados a partir da Lei é de 94%, enquanto no Nordeste é aplicado cerca de 4%. O restante do País fica com aproximadamente 2%. Conforme o Ministério da Cultura (Minc), ao fim deste ano, o setor cultural corresponderá a apenas 0,66% da renúncia fiscal da União.
 
"A lei precisa de mudanças há muito tempo. Deveriam ter sido feito ajustes, como uma fiscalização maior dos projetos aprovados, além de criar instrumentos que realmente façam a desconcentração desses recursos", sugere Wolney.
 
Mecanismos da Lei 

O advogado e professor de Direito da Cultura da Universidade Cândido Mendes (RJ), Mário Pragmácio, lembra que a Lei é composta por três mecanismos: Mecenato, Fundo Nacional de Cultura (FNC) e o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart), sendo que apenas o primeiro é levado em consideração quando se debate a Lei Rouanet.
 
"Precisamos debater o sistema todo. Há pelo menos uma década se debate a atualização da Lei, sobretudo em razão do seu viés neoliberal que privilegia o mecanismo do Mecenato em relação ao FNC, ocasionando as distorções que a opinião pública conhece bem", explica. "Uma das propostas que estava ganhando aceitação era o reforço do papel do Estado na política de fomento".
 
Espaços de resistência 
 
Para ele, a discussão contrária à lei, que ganhou as redes sociais, desconsidera o impacto positivo da economia da cultura. "A cultura tem um papel importantíssimo para o exercício da cidadania, sobretudo quando atrelamos à noção de direitos culturais, que são direitos humanos e fundamentais", aponta. "E são os direitos culturais que devem conduzir os debates sobre qualquer tipo de reforma da Lei Rouanet".
 
Outro ponto levantado pelo advogado é a mobilização social sobre as políticas de cultura. "Movimentos, tal como o #ocupaminc, mostram que a cultura é, além de tudo isso, um espaço de resistência política e criação, onde se pode encontrar novas perspectivas para uma política cultural verdadeiramente democrática e que preze pelo pleno exercício dos direitos culturais". 

- Jornal O Povo 

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